sexta-feira, 17 de abril de 2009

Metro, decímetro, centímetro

- Oh Caracóis, que curso é que tu tiraste? - e o imediato pedido de desculpas.
Não tens de pedir desculpas. Tens toda a razão e legitimidade para achares a situação divertida e digna de piadas e comentários mordazes.
O que tenho eu? Pelo menos de forma mensurável? Quantificável?
Nada.
Qualidades? Sim, acredito que as tenhas.
Servem para alguma coisa? Não.
Simples.

Pessoas que nos surpreendem com coisas pequeninas


Provavelmente o melhor presente que algum dia me ofereceram (by Bale):

"Proveniente do condado de Wexford, este whisky é envelhecido durante anos em cascos de bandolim irlandês. Esta particularidade faz com que a pessoa que o beba comece a tocar bandolim espectacularmente bem."

A working class hero

Acordar e abrir os olhos depois de uma noite mal dormida. É um esperar que não seja mais que um interlúdio do sonho que estávamos a ter enroscados, e afinal parece que vamos mesmo ter de sair da cama às seis da manhã.
Sento-me na beira da cama, estremunhado, ensonado, irritado, afinal de contas, ninguém devia ser obrigado a fazer uma coisa que não gosta. A vida tem sido assim nos últimos (demasiado tempo que não quero contar), esta mesma rotina. O meu ingresso na classe laboral tem sido como um longo e eterno acordar. Confuso, lento, irritado. E não, não há perspectivas que o dia vá melhorar as coisas.
Fico sentado na beira do colchão eternidades, à espera que o meu corpo reaja às ordens que a minha cabeça se esforça por ditar. É tempo de acordar, de pôr a mexer estas pernas preguiçosas. Upa, que está aí mais um dia de trabalho.
Frio, autocarro, mais frio, gente que entra sai. Tenho de fazer uma reclamação na empresa de transportes. Demasiado frio que entra pelas frestas das portas, motoristas carrancudos (pelos vistos não sou só eu quem tem mau acordar), bancos demasiado duros para o pavimento da cidade, para a habilidade do condutor em acertar em todos os buracos da rua e para o meu praticamente inexistente rabo.
Oito horas de trabalho diário. Demasiada responsabilidade. Muitos procedimentos absurdos, gente ainda mais absurda, mal educada, reivindicativa, barulhenta. Quase me dá vontade de trabalhar numa biblioteca, pelo menos tinham de falar em voz baixa.
Oito horas cumpridas. Sai-se sem pressas. Afinal de contas, porque havia de ter pressa de sair para o frio? Para voltar a uma casa vazia, com o jantar preparado de véspera à espera de ser aquecido no microondas, apenas para ser deglutido em silêncio e tomar um café no estaminé no rés-do-chão.
Não há um convite, um telefonema, ninguém. De qualquer das formas provavelmente ia declinar, tenho um jeito muito particular para ser uma besta depois de um dia de trabalho (e há que não perder o ritmo que daqui a umas horas vem aí mais um).
Hora de voltar a casa e de fazer de conta que me ocupo, que tenho uma vida. Esperar que o ponteiro dos minutos dê as voltas suficientes para eu achar que vale a pena deixar de lutar contra o sono. Três da manhã. Daqui a outras tantas já estou a repetir tudo de novo. Dormir, ou algo que se assemelhe. Vou fazer de conta que estás aqui. Bem, tu ou a Bo Derek.
Luto só mais um bocadinho.....



Para os mais contemporâneos:




Para os que como eu ainda acham que este gajo devia estar vivo (sim, havia vida para além do "Love, Love me Do")... a homenagem ao génio:


Das cidades e de Nós

Cruzaram-se por acaso na rua, a mesma rua que ambos percorriam antes de mãos dadas e corações apertados. A princípio não falaram, há alturas em que as palavras custam a sair de gargantas apertadas pelo nó sufocante da perplexidade. Depois veio a conversa de cincunstância, "como estás?" "os teus pais? o trabalho?". "Cortaste o cabelo, fica-te bem assim", e ambos sabem que está a mentir, uma tentativa inocente de sero o mais cordial possível na situação mais tensa em que se viam desde o dia em que resolveram enterrar os machados de guerra e tacitamente terminar as hostilidades. Sempre houve entre os dois a política da terra queimada, deixaram que uma vida em comum (pouco tempo, demasiado tempo) fosse dilacerada no meio das trincheiras em que se aquartelaram.
As mão dele nos bolsos a remexerem as chaves, os olhos dela a percorrerem as ruas à procura de algo, alguém, um pretexto que a furte à conversa que ameaça prolongar-se sem que nenhum dos dois saiba o que dizer para a terminar. Sempre foi a grande vantagem dela sobre ele, jogar em casa, lutar na própria cidade. O seu terreno elevado. Foi por isso que ele passou a odiar a cidade, aliás, todas as cidades onde já tinha amado.
- Bem... está frio e tenho de ir embora que ainda vou ter com a minha mãe ao escritório.
- Sim, claro! Eu também tenho de ir, vou para casa que ainda não preparei nada para o jantar!
A mãe dela está reformada há tempos, e ele não cozinha desde que ela o deixou. Só cozinhava para ela.
Ambos sabem que mentem mutuamente, mas é nessa mentira que vai terminar o sufoco que eles vêm a oportunidade para se despacharem mutuamente. O que dantes era pretexto para estarem juntos era, mais uma vez, o que os afastava.
Despedem-se com os "foi bom ver-te", "a ti também". Mentiras, mentiras. Não sabem como terminar o encontro, mas as cabeças baixas resolvem as dúvidas por eles.
Afastam-se em sentidos opostos, ela sobe a rua e ele desce (sempre teve uma tendência para descer, e mais uma vez parece-lhe adequado).
O que não reparam é que, cada um na sua vez, olham para trás e de novo para a frente, na esperança muda e inconsciente de que se cruzem olhares. Cada um olha para trás e apenas consegue ver o outro afastar-se. Mas eles sempre foram assim. Encontravam-se desencontrados, e nunca vão saber que o que procuravam estava ali, sobre o ombro de cada um. E foi assim que, pela primeira vez, uma esquina selou destinos.

Quase

Chegou ao pé dele devagar. Era uma daquelas tardes meigas de Abril, em que qualquer dia parece um longo e interminável Domingo, com aquela luminosidade que fere os olhos de quem se levanta já o dia vai longo.
O olhar embargado que trazia traía o que lhe ia por dentro, e foi aí que começou a ter medo. Nunca tinha visto aquela combinação de feições, e tinha apenas uma noção muito vaga do que aquilo significava. No máximo, tinha já "ouvido" algo parecido com aquilo, muito tempo antes, ao telemóvel, quando ela lhe ligara a chorar por ter gasto num mês toda a bolsa de estudo. Era assim que deviam estar os olhos dela nesse dia. E mesmo tendo sido há tanto tempo, ele teve a mesma sensação que teve nesse preciso momento. Não havia boas notícias daquele lado.
Os passos dela eram tímidos e relutantes, muito diferentes do passo decidido que ele sempre lhe conhecera desde que nascera e que a conhecia por fora.
Aproximou-se devagar e, pela primeira vez desde que ele se lembrava em toda a sua vida, ela abraçou-o, como deviam fazer todas as mães. Não que não houvesse afecto entre eles, mas havia muito tempo que ele não se lembrava de um contacto tão quente e aconchegante. Foi o aperto mais mais libertador que alguma vez sentira, e foi esta mistura de caminhos que deixou ao fim de muitos anos as comportas abertas.
"Obrigado, mãe. Obrigado por ao fim de tantos anos finalmente procurares o meu abraço. Podes ver como eu cresci, vê, mãe!! Vê como posso abraçar-te por inteiro! Como os meus braços cresceram, como já não tenho de ficar em bicos de pés e com a cabeça encostada à tua barriga!!"
Explodia de felicidade, de um sentimento de regozijo imenso. Ardia por dentro por finalmente ter encontrado, sem saber como, uma forma de quebrar aquela barreira que sempre o tinha mantido à distância dos afectos. As lágrimas corriam sem travão, e então conseguiu sorrir para ela.
Foi só aí que reparou no zipper do saco escuro que os paramédicos fechavam na sua cara, enquanto a mãe se afastava.