terça-feira, 22 de março de 2011

Love? It's Overrated - XIX




Ela: Vá lá, não podes ser assim tão mau.



Famous last words.



segunda-feira, 7 de março de 2011

Amor & Beringelas

Entrou de rompante no café a sacudir o casaco, encharcada da chuva que caía lá fora em roldões, como quando tentava afastar de si aquela poeira fina de saudade que a cobria naquelas tardes solarengas de Outubro. A sensação provocada pelo aroma adocicado do fumo que pairava e o calor que se fazia notar no interior arrancaram dela o primeiro meio sorriso do dia, ao mesmo tempo que a promessa de um chá preto bem quente a fez finalmente descontrair os ombros depois daquele dia aparentemente interminável.
Sentou-se na primeira mesa que encontrou livre junto da enorme janela que corria junto à rua, talvez a visão da chuva a cair implacável lá fora a distraísse da chuva que caía dentro da sua cabeça. Ou talvez fosse para que pudesse vê-lo chegar. Sim, era isso. Tinha-se sentado de costas para a porta, numa tentativa de prolongar a surpresa de não saber quem ele era, experimentando ao mesmo tempo adivinhar nos rostos dos homens que passavam na rua quem ele seria. Era a primeira vez que fazia tal coisa, combinar um encontro com um homem que não conhecia de lado algum tirando de um fórum sobre culinária. Um encontro fortuito pelas encruzilhadas da informação, algum farsola (pensava ela) disfarçado de homem supostamente sofisticado, que usa a culinária como muleta para o engate, mas que afinal (constatou ela) inventava pratos com beringela, e por coincidência, gostava tanto como ela de Chagall, tinham A Música do Acaso sempre por perto (ela na cabeceira, ele na mesa de café na sala) e ouviam ambos Morphine quando o sono teimava em não aparecer. Daí a marcarem um encontro foi apenas o tempo de acharem que dois trintões desiludidos com o amor mas ansiosos por ele têm mais que fazer do que apenas comunicarem por mensagens elegantemente provocatórias através de um monitor.
E assim ela tentava adivinhar onde ele se encaixava nos rostos anónimos que passavam na rua. Não, não podia ser o executivo de gabardina caqui, que fugia desastradamente da chuva com a gravata em desalinho e a calva protegida por uma pasta engraxada. Ainda menos o sujeito com aspecto de taxista, com um bigode tipicamente benfiquista amarelecido pela nicotina. Talvez fosse o indivíduo que atravessava agora a rua. Bem constituído, ombros largos, passo decidido e ligeiro, com calças de ganga e um blusão de malha polar. Chegou a desejar que fosse esse, por uns segundos, levada pela excitação do insólito da situação e pelos modelos francamente maus com que se tinha entretido até aí. Talvez estivesse até a esboçar um sorriso inconsciente para o estranho que atravessava a passadeira em frente a ela, já que o mesmo sorriu com a delonga do predador ao observá-la pela montra, tendo-se esbatido logo a ilusão ao mesmo tempo que seguiu na direcção oposta à da porta do café. "Ainda assim, bem que podia ser... Aposto que me dava uma foda, aqui mesmo em cima do carro, tão grande que me fazia um filho" - e automaticamente todo o peso de uma infância judaico-cristã se traduziu nela sob a forma de um rubor inflamado e censório.
O chá preto seguiu-se de um café e de uma água tónica, em reacção ao atraso mais que óbvio do cada vez mais insolente desconhecido. A espera prolongou-se por mais de duas horas sem que o mesmo desse sinal de aparecer, e todas as chamadas feitas para o telemóvel caíram uma e outra vez directamente no voice mail, transportando o estado anímico dela de uma leve preocupação para o desespero, descambando finalmente na fúria intempestiva com que bateu os trocos na mesa quando se levantou e na auto-comiseração de quem mais uma vez levou uma tampa do tamanho do universo.
Saiu a correr do café, sem vestir sequer o casaco, mergulhando sem respirar na chuva que caía cada vez mais forte na rua. A mesma chuva que lhe toldou totalmente a visão quando atravessou a rua fora da passadeira contra seu costume, e impediu que visse o carro que derrapava já no asfalto encharcado, a tentar adiar o encontro inevitável entre a carne e o metal.
Acordou umas horas depois numa cama de hospital, estranhando a linha de soro ligada à mão esquerda e o gesso que lhe envolvia a perna direita. Desorientada e com a boca seca, olhou em volta no quarto, ao mesmo tempo que se apercebeu da mão quente e segura que lhe segurava a mão direita e uma voz mais ou menos familiar lhe explicou calmamente o que tinha acontecido, lamentando não ter conseguido parar o carro na pressa que levava para chegar ao local de encontro, e ainda mais que o mesmo fosse num quarto de hospital (incluiu, mais tarde, de forma humorada, que de facto o primeiro encontro tinha sido com ela espatifada no pára brisas partido do carro dele). Não conseguiu associar o rosto à voz, mas a visão dos olhos cor de âmbar que repousavam nela, mistos de aflição com alívio e o toque que a tranquilizava nessa altura em que nos sentimos tão frágeis como imbecis, fez com que esse insólito momento se transformasse na coisa mais estranhamente plausível. Uma perna partida não se compara por nada a um coração de deixa de ganir.
Guardaram o gesso cheio de rabiscos num arrumo quando foram viver juntos, e ainda hoje no aniversário do seu primeiro encontro, ironicamente desastroso, trazem-no para baixo e lêem os pequenos haikus que ele escreveu todos os dias quando a visitava no hospital. Já só têm um exemplar do Auster, ouvem Morphine enquanto fazem amor (presumo eu, não acredito que sofram de insónias nos braços um do outro) e inventaram juntos muitas mais receitas que incluíssem beringela. Concordaram atempadamente que Matisse seria melhor para decorar a sala.
Continuam juntos hoje, 6 anos depois. "Para a vida", dizem eles.
E eu acredito.

Love? It's Overrated - VIII

Sonhava desde pequenina para ela o casamento perfeito. Entrar na igreja pelo braço do pai, de vestido branco, com marcha nupcial tocada por um quarteto, meninos das alianças de caracóis dourados e ele, o príncipe encantado, a esperá-la, ao fundo da nave.
Os anos passaram, a menina cresceu; tornou-se um tanto quanto menos espiritual, o que fez com que o pormenor igreja fosse menos preponderante que aquilo que imaginava nos Domingos de manhã de catequese. O simbolismo do branco perdeu-se pelo caminho com o primeiro, que ela julgou ser príncipe, e levou-o com ele, de uma vez só e enleado em mentiras, sucumbido a partir daí em assomos não muito frequentes mas firmes, à fraqueza da carne.
De candidato em candidato, com os anos a avançarem de forma implacável, acabou por conciliar num só todas as aspirações, aquele que reunia as condições menos boas em detrimento das más. Nem sempre as segundas (ou demais) opções têm de ser encaradas como inviáveis, pensava.
Amava, finalmente. Resignada, conformada, pressionada.
Mas se havia coisa de que não prescindia era do vestido. Marcadas que foram as bodas, iniciou automaticamente as provas, escolhendo meticulosamente nas revistas que lia na modista o melhor de cada modelo, esgotando a paciência da pobre funcionária com as constantes alterações que propunha a cada dia. Imaginava, pelo menos isso, o vestido perfeito. Ao menos que isso assim fosse.
O príncipe acabou por se revelar não tão principesco quanto isso. Por ironia (a que me deu na veneta, afinal de contas esta é a história que invento na minha cabeça) fugiu com a massacrada modista. Tragicomédia de cordel, piroseira de aldeia, Camilo Castelo Branco em versão blogger. Serve o propósito. Acabou sozinha, destroçada, humilhada mais uma vez, numa idade que já não fazia dela uma debutante.
Faria hoje, se tal fosse verdade, 8 anos que tal aconteceu. E continua a vestir, continuamente, o mesmo vestido inacabado, ditando ordens a uma modista imaginária e julgando ver, dia após dia, surgir aos seus olhos, consumadas, todas as suas aspirações. Já que nada mais o fora, que pelo menos isso o seja. Perfeito.