sábado, 15 de maio de 2010

"Romeo Is Bleeding"

Há já meses que tinha entrado naquele limbo. Um arrastar de dias, uma sequência mais ou menos lógica de acontecimentos, mas apenas do lado de fora do apartamento onde voluntariamente se tinha encerrado. Parecia-lhe apropriado, e adaptou a si mesmo o ambiente daquela sala e que condizia com o estado de espírito que lhe pesava.
Durante 3 meses voltou a um estado quase gestacional. Cerrou as cortinas e os estores das grandes janelas de vidro duplo e apenas lhe chegavam os ecos difusos de um mundo que se desenvolvia no exterior. Como se dentro do ventre materno de novo, experimentava o mundo apenas indirectamente.
Começou a despertar lentamente, primeiro com o levantar-se do sofá e percorrer as assoalhadas mais ou menos vazias, começar a escolher roupa para se vestir, do meio dos roldões amarrotados que ela lhe tinha deixado empacotados e deixado à porta de casa para ele recolher. Desde que ela o deixara, era ali, naquele espaço que se recolhia.
Iniciou pequenos rituais diários. A preparação do "Cerelac" com que se alimentava fazia semanas, programar o vídeo para gravar os filmes arrastados da 2 caso o sono o vencesse, tomar um duche e fazer a barba de 3 em 3 dias.
Os dias, esses, avançavam sem que sentisse. Colocava Jeff Buckley no gira discos e arriscava pequenas coreografias de tai-chi, reminiscências de um passado ligeiramente mais espiritual.
Começou a elaborar pequenas refeições que não à base de farinhas lácteas, que iam escalando em complexidade com o tempo e ao sabor dos caprichos do palato.
O tabaco chegava-lhe às sextas-feiras, dois volumes, juntamente com as mercearias, com a providencial visita da mulher a dias, a quem confiava as chaves mas de quem fugia na hora em que entrava, e recolhia-se trancado no único quarto que havia, fazendo questão de deixar uma lista com as compras e o sempre sublinhado "por favor, feche as persianas ao sair" no final.
Uma manhã em que o céu se tinha colorido de côr de papel pautado,pardacento, monocórdico e alinhado (não que tivesse grande interesse para o nosso sujeito), ele pressentiu a luminosidade que escapava pelas frestas da porta do corredor do prédio, e colocou os óculos escuros antes de deambular pela penumbra. Sorvendo devagar um copo de ginja d'Óbidos e cantarolando "They call me the wild rose", chocou de forma acidental e com alguns impropérios, com o móvel que guardava o pesado gira discos "Decca". Pontapeou com violência os vinis espalhados pelo chão em raiva, e agarrou num deles com o intuito de o esmagar contra a parede, "eujátedigomeugrandessíssimofilhodaputa", mas uma observação mais de perto antes da catástrofe (não fosse estar a esmagar o Waits que ela lhe tinha oferecido) desvendou-lhe em letras já meias apagadas o frontispício "Chopin", estampado no muito conservador pretoamarelo da "Deutsche Grammophone" já buído do tempo.
Arriscou a audição, e sujeitou à mágoa da agulha a matriz de polímero e deixou fluir um nocturno.
E em contraste absoluto com a música, encolhendo os ombros, encaminhou-se para a janela e abriu o estore de uma vez só, deixando a luz do dia inundar a sala. Abriu a grande portada, e pela primeira vez saiu ao ar lá de fora. Acendeu um cigarro, e já não sabia se sorvia o fumo ou a luz, mas "foda-se, já nem me lembrava..."
A luz entrecortada do sol lembrou-o dela.
E ela já não passava de uma cicatriz. Acendeu outro cigarro. E atirou com toda a força que tinha o Waits pelos ares, que se estatelou lá em baixo.

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