sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O crime perfeito

Desceu as escadas mais uma vez, mais uma noite, como já há muito tempo fazia, cumprindo os pequenos rituais diários. Desencostava o frigorífico da parede, abria a porta que se escondia por trás dele, descia as escadas de madeira para a cave e só ligava a luz, um ténue candeeiro de secretária depois de ter acendido um dos Pall Mall que levava consigo para a bruma. Noite após noite, há tanto tempo que não se lembrava já do quanto, ele recolhia-se até de madrugada sentado naquela cave vazia, ocupada apenas por uma secretária espartana e uma resma de folhas de papel amarelo. Descia para escrever.
Tratar-se-ia de um cenário comum, um qualquer candidato a escritor com laivos de melodramatismo exacerbado, não fosse a forma e o propósito de tal empresa. Sentava-se sozinho, e após devorar o cigarro, acendia o candeeiro e começava a escrever. As palavras saíam-lhe quase de rajada, o que não seria de admirar, já que durante todo o dia pensava nelas. Havia um fio condutor no raciocínio, não era um exercício de espontaneidade o que se passava naquela cave. Congeminava durante o banho no que iria escrever. Durante as reuniões de planificação no trabalho, ele imaginava a acutilância de um advérbio, e enquanto atravessava a paisagem cinzenta da cidade encurralado entre os corpos da hora de ponta nos autocarros imaginava como um simples ponto e vírgula teria o efeito de mais um aperto na garganta dela.
Escrevia para ela, e fazia-o por vingança. Todas as noites descia para um lugar mais escuro do que a cave onde se encerrava em segredo para escrever-lhe um livro. Um livro que continha só e apenas a vingança dele sobre ela. O seu móbil era frio, simples e escorreito: matá-la. Matá-la-ia com a estória que cravava com a BIC preta no papel amarelo grosso, noite após noite. Estudava a forma de encerrar o veneno mais antigo que existe nas palavras que escrevia: o ódio dos abandonados.
Era o crime perfeito. Uma leitura, uma única leitura de uma só assentada, presa às palavras dele, presa ao papel, agarrada a uma leitura esfaimada, e no final, a morte silenciosa, sem vestígios, sem marcas, sem sujidade. Uma morte limpa.
Era obrigado a um esforço sobre-humano, que o consumia até à exaustão. As palavras nunca tinham tido dificuldade em visitá-lo e dançarem-lhe na ponta dos dedos, transmitidos por essa batuta permanente que comandava com a mão direita em traços finos e longos. Não, nunca tinhe tido dificuldades em escrever. Mas como escrever de forma a prender-lhe a atenção até ao final? Sim, era imprescindível que ela lesse o livro até ao fim, que devorasse, lenta mas continuamente, as palavras que lhe dedicava. Teria de ser como uma maçã envenenada; podemos espalhar o veneno na superfície, mas é imperativo termos o máximo dos cuidados. Demasiada concentração numa pequena porção e o sabor vai levar a que recusemos a degustação logo na primeira dentada. Demasiado espalhado e corremos o risco de ficarmos saciados antes de ingerirmos a quantidade necessária para que ele se manifeste. Não, o veneno nas palavras, nas páginas do tomo tinham de ser na dose necessária para matar, mas tinham de ser doces, cativantes, de um certo modo viciantes até; queria matá-la, mas queria fazê-lo da forma mais cruel, queria que o estertor fulminante da agonia final fosse dominado pela incredulidade do prazer.
Por isso ele não tinha outra preocupação senão imaginar na sua cabeça, forçar cada palavra a articular-se de forma a que estivesse lá, nas doses certas, o móbil máximo da obra.
E assim, durante o dia, ele descia até um lugar mais escuro que a cave, um lugar que ficava bem escondido dentro dele, para conjecturar, para delinear mentalmente cada porção da estória. Sabia-a de cor, sem falhas. Cada letra, cada palavra, cada capítulo, tudo se encontrava gravado na memória dele, como se o seu cérebro fosse uma complexa prensa de Guttenberg, com cada caractér pronto a morder o papel e lambuzá-lo de tinta pegajosa e espessa.
Aproximava-se o fim. Ao fim de todos esses meses, ele tinha finalmente chegado ao capítulo final. Faltava-lhe apenas o parágrafo em que o personagem se levanta do balcão do bar em que se encontra a beber um licôr de café e atravessa a porta em direcção à resolução da estória. Mas, fruto do acaso, ou de qualquer outra vicissitude, nesse dia, entre o esforço para se manter concentrado na reunião trimestral com o chefe de equipa e o lembrar-se de comprar a coleira nova para o gato, por um qualquer motivo que o arrancou à rotina cerebral, não arranjou, pela primeira vez, as palavras. "Menos mal", pensou, "sempre me dá o tempo suficiente para acabar de me preparar." Era uma noite de celebração. Abriu a garrafa de Jack Daniels que tinha guardada por baixo do televisor que de resto, nunca ligava, e bebeu um trago. "E porque não dois? Afinal posso alongar-me. Hoje, ponho um ponto final." Ao fim de cinco doses, resolveu-se finalmente a arrastar-se até à cozinha e arrastou o frigorífico que lhe escondia o acesso ao tugúrio onde se encerrava. Acendeu o cigarro e desceu as escadas com ele aceso no canto dos lábios, garrafa numa mão e BIC na outra, como um punhal que carregava lesto, desembainhado da tampa plástica e pronto para a matança.
Sentou-se na secretária e acendeu o candeeiro, pronto para encerrar por fim o capítulo e dar a última pincelada de curare na ponta da flecha que tinha apontada ao coração dela, qual Cupido caído. As palavras começaram a afluir-lhe à mente, uma após outra, e ele aguardava antes de as marcar no papel, revendo-as, vendo-as dançar na cabeça como sempre fizera desde miúdo, embebendo-as no caldeirão de sabath que tinha encerrado dentro dele e imaginando as bruxas a dançar com elas, adorando a Besta que presidia a essa reunião improvável entre as palavras e a morte física.
Fechou os olhos, consumindo-se em nervos até que elas finalmente tivessem um encadeamento, uma lógica, que rasgassem como espinhos, cravassem a carne como a presa da víbora e lhe provocassem tanto prazer como se fossem um corpo que lhe tocasse exactamente da forma que ela sempre sonhara, levando-a insuspeita nos braços de Dionísio até aos pés de Medusa para um último beijo antes da respiração entrecortada se extinguir num último gemido. Por fim, elas perfilavam-se, desfilavam na mente dele, uma após outra, e ele via-as, a descreverem círculos em espiral, passando em frente dele, através dele, sair do corpo e entrarem de novo. Via-o a levantar-se do balcão, esmagar o cigarro no cinzeiro já cheio, a tonalidade da luz condensada em adjectivos, o fumo que pairava na penumbra, a luminosidade que entrava pelo vidro da porta a anunciar a manhã. Viu tudo, e via como isso era difícil de parar, era impossível resistir, sim, ela vai ter de ler até ao fim. Tomou nota mental de que a última palavra teria de ser colocada de forma isolada na última página, em ímpar, para que o pathos fosse prolongado, a curiosidade levada até à ansiedade de virar a página, como quem vira uma esquina numa correria sôfrega e desenfreada e carrega sobre uma espada nua apontada a nós, pronta a rasgar-nos até à morte. Sim, ele sentia isso, o tremor da excitação, podia saborear como ela iria reagir, levada até à palavra que se formava agora na cabeça dele.

Encontraram-no três dias depois, caído para trás na cadeira de encosto, depois de a vizinha do lado estranhar o facto de ele não ter recolhido o correio que se acumulava à porta. Encontraram-no ainda com o filtro queimado do cigarro nos dedos, apertado quase até se desintegrar, e estilhaços da BIC esmagados na mão direita, "tal força deve ele ter feito no último momento", afirmou o paramédico ao inspector de polícia que recolhia indícios; "apoplexia fulminante" ditava o relatório preliminar do médico legista; "pobre coitado", dizia o senhorio.
Recolheram o que se encontrava na cave para análise forense: um candeeiro de latão e uma resma de folhas amarelas, organizada e carregada de traços longos e finos, que eram a caligrafia de alguém a quem urgia o tempo. Uma arma, era o que eles recolhiam. Particularmente inofensiva agora, já que a porção final de veneno tinha ele consumido na última noite, enquanto as palavras o atravessavam e dançavam através dele, acumulando-se com o restante veneno que ele sabia de cor e salteado no âmago.

A pedido da família, o manuscrito foi-lhe entregue a ela, já que no frontispício se encontrava a dedicatória, com o seu nome inscrito. Leu-o numa noite, deliciada com o que lhe saltava na mente ao ler as palavras que ele lhe dedicara, ao contar aquela estória densa e apaixonante. Mas faltavam-lhe os parágrafos finais, os derradeiros, o clímax último. "Afinal de contas, eu tinha razão", pensou enquanto guardava a resma numa caixa de sapatos; "nunca foste capaz de levar nada até ao fim."

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